quarta-feira, 2 de abril de 2008

Devaneios... (Tiago de Azevedo Maganha)

Dada a tarefa de confeccionar um texto paralelo ao de Xavier de Maistre, iniciei uma pequena e, ao mesmo tempo, longa viagem à roda do meu quarto. Na verdade, estou em duvida se começo pelo amanhecer ou pelo anoitecer, mas como sou um indivíduo de hábitos diurnos, começarei pelo começo, isto é, pelo amanhecer.
Meu quarto está entre um banheiro e um outro quarto, que agora está desocupado, aliás, ocupado por duas camas e dois roupeiros quase sempre inanimados. Gosto desta posição, e ousaria até alcunhá-la de estratégica, pois ainda não possuo um anexo aconchegante, também chamado de suíte, não raras vezes me desloco para o banheiro e, graças a sua estratégica posição, não gasto mais que cinco passos para chegar até à cerâmica milagrosa que é a bacia, a maioria chama de vaso mesmo, outros sanitário, e alguns até mesmo de privada, na verdade o chamo de vaso, apenas citei esta nova alcunha, bacia, porque aprendi recentemente em um estabelecimento que vende apetrechos para o famigerado, formidável, aconchegante, relaxante, prazeroso, instigador de idéias, pensamentos, sentimentos adormecidos, pessoas esquecidas, momentos deletados, aspirador de inspirações, e outros adjetivos dignos da alta realeza do supracitado anexo.
Pois bem, você já possui uma superficial idéia de onde se localiza, ou onde está posicionado o meu quarto. No interior, ao abrir a porta, você avistaria meu leito, ao lado meu roupeiro, a frente uma mesa com sob meu computador, um pouco à direita uma estante com livros, e ainda mais um pouco à direita, uma mesa com os objetos flutuantes.
No amanhecer, os raios solares penetram pelas fretas da janela, formando uma espécie de mosaico. Pela manhã, quando o sol está enfurecido, nota-se uma ligeira claridade por estas frestas e, por ser um individuo de hábitos diurnos, não me importo com isso, ao contrário, enquanto realizo os alongamentos ainda no leito, observo as mais variadas formas dos mosaicos da minha janela. Imagine você esta atmosfera entorpecente, esta mescla de baixa luminosidade com o estalar dos músculos anteriores e posteriores, em suma, uma sensação paradisíaca.
Os alongamentos citados acima são recentes em meu despertar, até pouco tempo atrás acordava sobressaltado, quase esbaforido, e para não perder tempo, logo me punha de pé e me dirigia rapidamente ao anexo aconchegante para molhar minha face e me despertar compulsoriamente. Entretanto, aprendi com uma senhora, muito sábia, a importância de se alongar, ainda no leito de descanso, as mãos e os pés, e de se espreguiçar com ânimo, alongando as vértebras, esticando a coluna cervical, gastar alguns segundos bocejando, acreditem, todo este processo não gasta mais de cinco minutos, é muito relaxante e ainda mais prazeroso quando se tem mosaicos formados com a penetração dos raios solares nas frestas da minha janela.
Meu colchão é uma obra prima, suave, se encaixa perfeitamente ao meu corpo, isso me dá uma maior sensação de descanso, não que eu goste de descansar, na verdade preferiria ficar acordado, dado as circunstâncias hodiernas, a celeridade em que se dá a vida, gostaria de ter uma poltrona no lugar da minha cama, mas como a minha alma traz a “besta” agregada, ainda tenho que dedicar um tempo ao descanso da “outra” como diria Platão.
Citei os objetos do meu quarto, mas interessante mesmo é o que tem dentro de cada um deles, exceto a cama, obvio. O roupeiro na verdade não abriga apenas roupas, mas lembranças. Guardo em um canto, uma caixinha, que permaneceu por muito tempo escondida, e com o passar do tempo foi substituída por uma maior. Tenho guardado nela cartas, diários, fotos, papeis de bala, ursos de pelúcia, roupas intimas, recadinhos obscenos, propostas indecorosas, guardo ali momentos, pessoas, lembranças, passado, e por isso não fico mexendo sempre nestes guardados. Aliás, algumas vezes me passou a idéia de jogar esta caixa, com tudo dentro, bem longe de mim, de preferência em um rio, que dá idéia de renascimento, mas uma secretaria do patrimônio cultural não me deixou, e alem desta, a secretaria do meio ambiente também obstaculizou em prol do rio que já está um tanto quanto carregado.
Como não tenho o hábito de abrir a caixa, apenas lançar alguns objetos de quando em vez, não vou abri-la agora, e não me condenem por isso, garanto que você já teve ou tem uma caixa deste tipo, que você procura esconder de todos, até o dia que uma curiosa ou curioso (depende do sexo de sua da sua alma gêmea), movido pelo sentimento, no mínimo desbravador, localiza, com um olhar certeiro, a até então ocultada caixa, este momento é critico, explicações, palavras, na maioria das vezes não conseguem justificar alguns objetos, mas é um risco que se corre.
No roupeiro guardo também um álbum, que por motivos particulares, ainda prefiro que ele fique lá, longe das mãos alheias, num futuro talvez ele esteja disponível, trata-se de um álbum de fotografias, que guarda não apenas o passado, mas também o presente, este último me desesperaria se não fosse algumas atitudes que estou tomando para que este álbum não se estenda também para meu futuro. Roupas, confesso, adoro roupas, os tecidos variados, as cores, os cheiros, cada camisa conta um historia, cada calça nos remete a um momento, talvez você me tenha como saudosista, talvez até esteja certo, todos temos imperfeições.
No computador guardo muitas fotografias, tenho meus amigos ali guardados, amigos que se foram, alguns que se foram para a eternidade, outros que se mudaram e deixaram uma lacuna recente. Tenho nesta maquina revolucionária, instrumento que uso para lhe descrever meu aposento, textos de minha autoria, tenho o mundo a minha disposição através da internet, tenho o conhecimento, tenho saber, tenho as fofocas e as mais diversas futilidades ao meu alcance num simples clique do mouse.
Na estante guardo meus queridos livros, na maioria lidos, alguns pouco,s apenas folheados, alguns que me foram presenteados, outros que foram prazerosamente adquiridos. Tenho um que leio todos os dias, a bíblia, que me revela histórias fascinantes de um homem chamado Jesus, confesso que este homem tem mudado a minha historia.
Por ter parcas condições financeiras, moro a alguns metros do meu vizinho, do meu quarto, não raras vezes, escuto as conversas, as risadas espalhafatosas de uma louca varrida. Não nutro sentimentos bons para com eles, não morro de amores e não escondo isso também, da minha janela da para ver seu quintal, por isso prefiro os mosaicos a me debruçar e me deparar com uma espécie monstruosa ou com uma cena lastimável deste bando de homens da caverna, onde a civilização é tardia.
Tenho também três fotografias nas paredes, desprovido de egocentrismo, todas são minhas, uma quando tinha uns quatro anos, com os cabelos louros, milimetricamente penteados, com umas camisa pólo abotoada até o último botão, um rosto angelical, um sorriso ligeiro nos lábios, bochechas ardentemente desejáveis, atrás uma cortina floral, a última lembrança que tenho dela foi como pano de chão, meu Deus, como é triste a mobilidade social, num momento você está no ápice da sua carreira, e segundos depois você está abaixo de tudo e de todos.
Na outra fotografia eu tinha uns oito anos, ainda penteado caprichadamente, com uma camisa de manga comprida, sentado em uma cadeira e com um braço sobre uma mesa, apoiado pelo o outro, um sorriso doce estampado, um olhar tão meigo como uma rosa, ali estou eu, como será que me transformei nesta “besta”? A outra fotografia prefiro mão descrever, por fazer parte daquele álbum do meu roupeiro e pasmem, ainda estou milimetricamente penteado.
Meu quarto é um refúgio sem par, um abrigo nos dias de alegria e de tristeza, independentemente de como eu esteja, mais cedo ou mais tarde, estarei aqui, descansando ou lendo, ou descansando lendo, o fato é que estarei aqui, passarei neste estabelecimento quase a metade da minha vida, infelizmente estarei dormindo esta metade, e pode ser que uma parte da outra metade também esteja aqui, diante do computador, como estou agora, ou deitado no leito de meditação, pensando, remoendo, amando, odiando, sonhando, querendo, desejando, dormindo, brincando, escrevendo, construindo, demolindo...

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